segunda-feira, 10 de julho de 2023

O Porteiro da noite foi preso. Precisamos da sua ajuda.

Isso foi o que me disse o amigo Omar, num deteminado dia de julho de 1984.


Após uma longa jornada entre o trabalho, a faculdade e o cansativo trajeto da Av. Brasil até o Condomínio, ao chegar em casa, por volta da meia noite, encontrei o amigo Omar acompanhado de uma moça com uma criança no colo, sentados em frente ao meu portão, me aguardando.

Omar, todos conheceram (é aquele que montou a maior árvore de natal nesta Comunidade e que já falamos aqui). A moça e a criança eram a esposa e o filho de 5 dias  do nosso Porteiro Jorge que era filho de um ex morador da Rua Samuel Adler, casa onde, atualmente, mora o Ronaldo.

Perguntado sobre o que acontecera, Omar me falou que o Jorge, após ser substituído na portaria pelo Sr. Carlinho, às 6 da manhã, a caminho de casa, passou na padaria comprou o pão e, ao chegar no portão de casa (lá pros lados da água branca), dois policiais o prenderam e o colocaram na caçapa do camburão que partiu em retirada, não lhe dando  nem tempo de avisar a esposa que só veio saber da prisão pela vizinha.

Após diligenciar junto às delegacias da área, somente às 20 horas foi que a esposa veio saber que o Jorge estava preso na DV-Oeste, um Posto Policial do Bairro Jabour. Foi então que a mulher compareceu ao Condomínio para avisar e pedir ajuda ao Omar (que era o Síndico na época) e para arranjar um advogado pra tirar o Jorge da prisão.

Mesmo sem ser advogado, mas sim quinto anista de direiro, não tive como deixar de atender ao pedido do amigo, já que era uma boa oportunidade de usar minha Carteira de Estagiário da OAB/RJ. Só exigi que o Omar arranjasse um carro para nos levar e sugeri fossemos à casa do vizinho (pai do Jorge) para que ele nos levasse à Delegacia, no que não logramos êxito.

O pai do Jorge nos informou que àquela hora da noite não ia tirar o automóvel da garagem porque o filho não merecia tal esforço, tendo em vista que há alguns anos passados o Jorge havia saído com o carro dele, sem autorização e batera num poste, voltando com o carro todo amassado e nada pagou pelo prejuízo.

Cientes, não nos restou outra alternativa que não fosse arranjar outro carro. Foi então que Omar foi em casa e voltou com um carro para nos levor à DV-Oeste no bairro Jabour.

Ao chegarmos na Delegacia, dirigi-me ao balcão de atendimento e fui logo interpelado por um Senhor bêbado que estava deitado num banco logo na entrada e que se dirigiu a mim com as seguintes paravras: 

"O Dr. vai ter que bater ai no balcão porque o polícia foi lá pra dentro dormir".

Foi exatamente isso que eu fiz e, após alguns minutos, apareceu o policial e me perguntou o que eu queria aquela hora da noite.

Me identifiquei como advogado (mesmo ainda não sendo) e falei que queria ver um preso de nome Jorge Ramos de Souza e a resposta foi que não tinha nenhum preso com aquele nome no local. Neste momento, o bêbado levantou-se do banco e falou para o Policial: 

"Esse preso que o Dr. está falando é aquele chorão que tu colocou lá na cela onde eu estava dormindo em paz, você me tirou de lá e colou esse tal de Jorge".

Em seguida, aproveitei a deixa e perguntei ao policial sobre qual foi o motivo da prisão do Jorge e a resposta que recebi foi que ele entrou pelo artigo 163 (do Código Penal), foi aí que me deu logo um pânico, pois eu não tinha a mínima idéia do que era o artigo 163, mas, mesmo assim, não perdi a linha. Demonstrei ao policial estar admirado com uma prisão com base no 163 (como se eu soubesse o que era) e falei: O Sr. tem certeza que é mesmo o artigo 163 do Código Penal? Sim, disse o policial.

Nesse mesmo intante, Omar me peguntava: Que artigo é esse Dr.? O que quer dizer esse artigo? Eu, já aperriado, cutucava e pisava no pé do Omar pra ele ficar quieto e ele soltou logo um: "Porra Sergio, fale logo que tal de artigo 163 é esse. Diz logo se o Jorge é um bandido ou não é".

Calado, enquanto me refazia daquilo que achava fosse um grande vexame (por não saber o que era o crime do artigo 163), senti quando o bêbado bateu no meu ombro, se apoiou no Omar ao meu lado e disse: 

"Aí Dr. eu que tô sempre aqui nessa delegacia, nunca vi ninguém ser preso por Dano ao Patrimônio Público".

Ah... que alívio senti, não só por saber que o motivo da prisão era por um crime de menor potencial ofensivo, mas também pela verdadeira aula de direito penal que recebi daquele bêbado, por sinal muito parecido com aquele da Hilda Hilst (só que esse bêbado verbalizava o que sentia). 

Sem dar a entender ao Omar e ao Policial que eu estava boiando no assunto, continuei a questionar o policial se o motivo da prisão era aquele mesmo e repeti o que o bêbado falara (nunca vi ninguém ser preso pelo 163), tendo o agente policial confirmado e me sugerido o seguinte:

"Dr. Considerando que o crime ocorreu há mais de 5 anos, o Senhor pode pedir ao Juiz que o coloque em liberdade, porque esse crime está prescrito", inclusive, o Sr. pode alegar que ele ficou das 7 até às 20 horas dentro do camburão que rodava pelas diversas localidades da região e só se alimentara com o pão que havia comprado para o café da manhã".

Munido dessas informações, pedi ao Policial para me arranjar uma folha de papel e deixar eu usar quela Remingthon toda empueirada para datilografar uma Procuração, no que fui prontamente atendido. Em seguida, pedi também para retirar o preso, a fim de que eu pudesse entrevistá-lo e colher sua assinatura na Procuração, no que não fui atendido dado o tardar da hora para abrir a Cela, mas fui autorizado e entrar na carceragem para fazer meu trabalho à porta da Cela, em meio aos diversos detentos que lá estavam.

Quando me aproximei da Cela, o Jorge veio até a grade, tremendo como uma vara verde, chorando como uma criança e tentando saber o motivo de sua prisão, (ele nem se lembrou de me perguntar como estavam a mulher e o filho de 5 dias). Após uma rápida conversa, o Jorge assinou a procuração e nos despedimos com a promessa de que eu retornaria na parte da tarde, logo após tentar um alvará de soltura  com o Juíz.

Ao amanhecer, preparei um "Habes Corpus", fui ao Fórum de Bangu para despachar com o Juiz e saí de lá radiante de alegria pelo sucesso da minha primeira causa criminal, como Estagiário. Tudo isso graças ao Omar que depois passou a me indicar várias outras causas. Daí a minha eterna gratidão a esse ilustre e festejado amigo.

Radiante com o sucesso, não me dei conta de que o Alvará de Soltura do Jorge deveria ser sarqueado (procedimento burocrático) e sem isso não era garantida a liberdade naquele mesmo dia, mas como eu que já havia faltado ao trabalho, fiquei empolgado e, no dia seguinte, com tudo já tudo resolvido retornei à DV-Oeste para liberar o preso, mas só depois é que fui saber que o motivo pelo qual o pai do Jorge se recusou a nos levar à delegacia foi que o carro envolvido no acidente era o dele (pai) que o Jorge pegou sem autorização.

Resumidamente, o caso foi o seguinte:

"O Jorge saiu com o carro do pai, colidiu  contra um poste da Light na Av. Ministro Ary Franco, foi parar na 34a. DP, assumiu a culpa e foi liberado com o compromisso de comparecer em Juízo quando fosse intimado. Meses após, o Jorge precisou entregar a Casa onde morava para o locador fazer uma obra que durou quase um ano. Nesse periodo, enquanto morava em outra casa, o Jorge foi intimado no endereço onde morava e não compareceu na Delegacia e nem em Juízo, indo o Inquérito para o Promotor que apresentou a denúncia com base no artigo 163 do Código Penal, sendo julgado à revelia, por não comparecer à audiência, no que resultou na expedição do Mandado de sua Prisão que foi encaminhado à Delegacia para capturá-lo no endereço onde morava. Após várias diligências, a polícia não conseguiu encontrá-lo, pois a casa onde ele morava estava vazia e em obras. Passado um ano, teminada a obra, o Jorge voltou a morar na citada casa e nem mais se lembrava ou sabia da existência do Mandado de Prisão pelo crime de Dano ao Patrimônio Púbico que é previsto no art.163 do Código Penal, sendo esse o motivo da sua prisão".

Depois disso tudo, fui surpreendido com a visita do Jorge que bateu no meu Portão e me ofereceu para comprar umas bugingangas que ele estava vendendo. Me ofereceu um Kichute que na loja eu poderia comprar por 50 e ele me venderia pelo equivalente hoje a 100 reais, o que achei absurdo, mas essa foi a forma dele me agradecer. Ao comentar o fato com o Omar, na semana seguinte o Jorge foi demitido.

Só quem coleciona casos iguais a esse, aqui na Comunidade,  percebe que muitos, ou não se lembram ou fingem não lembrar de ser grato pelos benefícios que já recebeu, principalmente de quem, verdadeiramente, se sente grato por ter conseguido entender o que Machado de Assis  (considerado o maior nome da literatura brasileira) quiz dizer quando cunhou essa bela frase:

"A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele de quem o faz".

Sergio Nunes
em 10/06/23.

Um comentário:

  1. EU CONHECI ESSE PORTERO MAIS NAO SABIA QUE ERA MAU ELEMENTO E O PAI DELE ERA UM MULATO GORDÃO QUE QUE ATE ME PAQUERAVA.

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